quarta-feira, 25 de maio de 2016

Previdência: Quebrada ou vilipendiada?

Em nosso atual cenário econômico, não é de se estranhar a frequência com que se mudam as regras para a aposentadoria. Tentando justificar mais esse arrocho ao trabalhador, o governo insiste na ideia da Crise Previdenciária. 
Este discurso é pontuado pela insistente máxima "país velho", que consiste no aumento dos números da população idosa, acarretando a falência ou incapacidade futura da manutenção do sistema público de previdência.
Mas como será que essa ideia surgiu?

A ideia de falência dos sistemas previdenciários públicos tornou-se mundialmente dominante em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. Foi quando a questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação, na defesa da ampla soberania dos mercados e sobreposição dos interesses individuais aos coletivos. Tudo isso fomentado pelo amplo crescimento do neoliberalismo econômico e a ascensão da globalização no mundo, impostos pelos mercados internacionais e neoimperialismo.

O principal argumento na proposição de mudanças radicais no sistema previdenciário, foi o aumento dos custos por ele gerado, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população.
No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos.
Será que essa crise existe mesmo?
Antes de respondermos a essa pergunta, precisamos conceituar corretamente o que se entende por Seguridade Social.
A seguridade social é definida na Constituição Federal de 1988, no artigo 194, como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

É, portanto, um sistema de proteção social que abrange os três programas sociais de maior relevância: a previdência social, a assistência social e a saúde. Um sistema que visa garantir ao cidadão segurança e proteção ao longo de sua existência, provendo-lhe a assistência e recursos necessários para os momentos de infortúnios. É a segurança social, segurança do indivíduo como parte integrante de uma sociedade.
Tendo esclarecido esse conceito, passemos a outra consideração importante.
A Constituição Federal de 1988, também estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O que acontece atualmente é que o cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
Voltando a nossa pergunta.

Existe crise?

Não.
O que existe é uma gigantesca farsa contábil, que transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que, segundo tese elaborada pela Doutora, professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, Denise Gentilapenas em 2006, atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões. Já o superávit da Seguridade Social foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira. 

É o famoso descobrir um santo para cobrir outro.

Para isso foi necessário implantar a visão dominante nos dias de hoje, que frequentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado, cuja suposta crise desestabiliza o orçamento geral. 
Algo que fere completamente o que se encontra normatizado no artigo 165, § 5º, da Constituição Federal:

§ 5º - A lei orçamentária anual compreenderá:
I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público;
II - o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;
III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo poder público.

Como vemos, a Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento de investimentos das estatais e o orçamento da Seguridade Social. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamando de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado.
Tudo assim, junto e misturado. 
Um subterfúgio usado para que o governo sinta-se confortável para anunciar um falso crescimento ou uma projeção positiva de superávit nacional. Isso dificulta a compreensão sobre quais as áreas realmente deficitárias do governo e quais são aquelas que tem superávit.
Além de segmentar o orçamento em partes, a Constituição também segmentou as receitas que deveriam financiar cada um dos orçamentos. Para o orçamento da seguridade foram reservadas as chamadas “contribuições sociais”, que são tributos que incidem, principalmente, sobre a folha de pagamento das empresas, o lucro, o faturamento ou a receita. São exemplos dessas contribuições: as contribuições para a previdência social, COFINS, CSLL e a extinta CPMF.


Para o orçamento fiscal ficaram os impostos tradicionais, como os impostos sobre renda, sobre produtos industrializados, sobre exportação e importação, as taxas e as contribuições econômicas como a Cide-combustíveis.
Ocorre que a Constituição também determinou que a maioria dos impostos deve ter sua receita repartida com os estados e municípios, enquanto as contribuições não estão sujeitas a tal partilha.
Quando o Governo Federal se viu na necessidade de elevar a arrecadação para promover uma redução do déficit público, e poder pagar a elevada dívida pública, ele percebeu que estava em uma sinuca de bico.

Se elevasse os impostos, parte da receita arrecadada teria que ser dividida com estados e municípios, de modo que restaria apenas em torno de 50% da receita adicional nos cofres da União. Se elevasse as contribuições sociais estas teriam que ser direcionadas para os gastos com saúde, assistência social e previdência.
O que fazer então?


Foi aí que, em 1994, no governo do então presidente Itamar Franco, se criou a DRU- Desveiculação de Receitas da União, uma normatização que determina que 20% das receitas da União ficariam provisoriamente desvinculadas das destinações fixadas na Constituição. Com essa regra, 20% das receitas de contribuições sociais não precisariam ser gastas nas áreas de saúde, assistência social ou previdência social.
O pulo do gato.
Isso abriu um caminho para que o Governo Federal promovesse uma forte elevação da tributação via contribuições sociais, que não precisavam ser divididas com estados e municípios e, graças à DRU, poderiam ser usadas para pagamento da dívida pública ou pagamento de outras despesas fora do orçamento da seguridade social.
Em outras palavras, um desvio de finalidade legitimado.
A comodidade oferecida por essa nova ferramenta fez com que o governo abocanhasse uma fatia cada vez maior desses recursos, acabando por promover uma desvinculação superior ao limite legalmente permitido.
Nenhuma novidade em se tratando de Brasil, vide os Decretos Suplementares feitos pela presidente afastada Dilma Rousseff.
Complicado?
Vamos descomplicar.
Digamos que você tenha uma pequena empresa de cosméticos, que produz perfumes, batons e hidratantes. Cada tipo de produto demanda um gasto especifico para sua fabricação e um lucro estimado de venda. 
Durante um certo tempo, todos os seus produtos se mostram rentáveis, como mostra a tabela abaixo:

FAR AWAY COSMÉTICOS
Produto
Custo de produção por unidade
Preço de venda por unidade
Lucro estimado por unidade
Perfume
R$ 8,50
R$ 18,50
R$ 10,00
Baton
R$ 2,20
R$ 4,00
R$ 1,80
Hidratante
R$ 5,10
R$ 9,00
R$ 3,90

Porém, em um dado momento, a matéria-prima para a produção do Hidratante subiu de preço, aumentando seu custo de produção por unidade para R$ 7,10 e, consequentemente, reduzindo assim seu lucro para apenas R$ 1,90. Para piorar, os pedidos de Hidratante caíram. Assim sendo, continuar fabricando o produto, acarretará prejuízo. Mas deixar de fabricá-lo comprometerá toda a receita da fábrica. 
O que fazer? 
Você tem então a ideia de retirar parte do lucro obtido com o perfume, para fomentar a produção de hidratante. Uma medida temporária para equilibrar as contas. Seguindo este raciocino, você desconta R$ 2,00 de cada unidade de perfume produzida, para ejetar esse valor na fabricação de hidratantes e equilibrar a receita e a despesa.
Agora imaginemos que ao invés de produtos tivéssemos ministérios, uns que gerassem lucro e outros que dessem prejuízo. Então, para tentar equilibrar as contas públicas, criou-se a DRU, o mecanismo que permite retirar parte da arrecadação de uma área para empregar em outra. De 1994 para cá, este mecanismo já sofreu várias modificações, sendo renovado por medidas provisórias, governo após governo, deixando de ser algo provisório, como consta em seu texto de criação, para tornar-se algo permanente, item imprescindível para a dotação orçamentária. Um golpe letal nos trabalhadores.
Todo esse esquema de realocação de recursos não é facilmente detectado.
Nos dados disponibilizados pela CGU - Controladoria Geral da União - no Portal da Transparência, são um tanto quanto limitados no que dizem respeito às receitas, pois não unificam as correspondentes à Seguridade Social, como determina a Constituição. Isso acaba por resultar num gigantesco desequilíbrio das contas quando se estabelece a relação Receita/Despesa.

Doutora Denise Gentil
De acordo com estudos feitos em sua tese pela Doutora Denise Gentil, após um amplo levantamento no SIAFI - Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - sobre os relatórios de Acompanhamento da Execução Orçamentária da União, chega-se a estarrecedora conclusão que :

"Grande parte dos recursos é legalmente desvinculada pelo mecanismo da DRU e livremente empregada no orçamento fiscal, financiando vários tipos de despesas, inclusive juros e amortização da dívida pública. Outra parte destina-se, de forma ilegítima, ao pagamento de aposentadorias e pensões do regime próprio dos servidores públicos, que é atribuição do Tesouro Nacional e não do INSS. E, por fim e mais grave, uma parte dos recursos da seguridade social não recebe nenhum tipo de aplicação que possa ser constatada através dos relatórios de execução orçamentária, ou seja, é “esterilizada” pelo Tesouro Nacional."

Em pleno século 21, o dinheiro da previdência é colocado embaixo do colchão ou sabe-se lá onde.
A falta de conhecimento da população sobre a forma como deve ser conduzido o orçamento da união, acaba por fomentar cada vez mais a tese que defende a necessidade urgente de uma reforma previdenciária.
Enquanto isso, o governo continua a sangrar ainda mais a Seguridade Social.
Em julho do ano passado, o governo federal enviou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 87/2015, que além de estender o mecanismo da DRU até 2023, também propõem um aumento em sua alíquota de desvinculação, passando de 20% para 30%, sobre a receita de contribuições sociais e econômicas, fundos constitucionais e compensações financeiras pela utilização de recursos hídricos para geração de energia elétrica e de outros recursos minerais. 
Em um post anterior tratamos da extinção das matérias OSPB, EPB e Educação Moral e Cívica e como a lacuna deixada por sua ausência colaborou para a má formação dos conceitos de cidadania e legislação. Agora, depois das informações aqui descritas, fica mais do que evidente a real necessidade de reimplantação, imprescindivelmente de OSPB - Organização Social e Política Brasileira - nos currículos escolares, pois é o total desconhecimento da nossa Constituição, que torna possível aos políticos a aplicação de verdadeiros golpes juridicamente legalizados em nós, cidadão brasileiros.
Enquanto isso não acontecer, continuaremos sendo meros marionetes, figurantes de tramas tão insólitas e fantasiosas como esta da quebra da previdência.



Link para o artigo 195 da Constituição Federal sobre Seguridade Social

http://app1.sefaz.mt.gov.br/Sistema/legislacao/constituicaof.nsf/9e97251be30935ed03256727003d2d92/4ddaf343a364a5010325675400672374?OpenDocument

Link para os artigos 165 a 169 da Constituição Federal sobre os Orçamentos
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/constfed.nsf/16adba33b2e5149e032568f60071600f/2aa857ae3d74dc9a03256968007a360c?OpenDocument

Link para Classificação das Receitas que financiam a Seguridade Social do Governo Federal
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/sof/receitas-publicas/ementario_2012_anexo_2.pdf

Link para a Tese A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005 - Doutora Denise Gentil
http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/teses/2006/a_politica_fiscal_e_a_falsa_crise_da_seguraridade_social_brasileira_analise_financeira_do_periodo_1990_2005.pdf

Link para a PEC 87/2015
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1567815

Link para post sobre OSPB, EPB e Educação Moral e Cívica
http://ideiasdebarbara.blogspot.com.br/2016/05/o-que-aconteceu-com-osbp-epb-e-educacao.html

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