quinta-feira, 9 de maio de 2019

O jornalista e o assassino


Aproveitando-me da máxima "Livro novo é aquele que você não leu", trago hoje minha critica literária sobre um livro publicado em 1990: O Jornalista e o Assassino.

Em um momento mundial, onde a mídia torna-se cada vez mais autora, propagadora e fomentadora de fakenews, faz-se mais do que necessária um reflexão sobre o papel primordial do jornalismo. É justamente essa reflexão que o livro nos traz.


Escrito por Janet Malcolm, conceituada colaboradora da revista New Yorker desde de 1965, o livro trata de temas polêmicos como ética no jornalismo e liberdade de imprensa. Ao narra a história de dois processos judiciais. O primeiro, a condenação do médico Jeffrey macDonald pelo assassinato de sua esposa e filhas, e o segundo, a ação movida pelo médico Jeffrey MacDonald,  contra o jornalista Joe McGinnis, autor de um livro sobre o assassino condenado.

Usando crime que ficou famoso em todo os Estados Unidos, a autora nos leva a refletir sobre princípios jornalísticos e, principalmente, sobre a delicada relação moral entre jornalistas e suas “fontes”, os personagens que dão vida e cor às histórias narradas em grandes reportagens. 

Apesar da história do médico Jeffrey MacDonald, ser o pano de fundo desse livro, não é exatamente essa a história que Janet Malcom quer nos contar. MacDonald nunca se declarou culpado, a despeito de diversas evidências que lhe eram bastante desfavoráveis. Ao fim do julgamento, que o sentenciou à prisão perpétua, decidiu procurar alguém que pudesse fornecer a sua própria versão dos fatos. Esse alguém seria o jornalista Joe McGinniss,  famoso após a publicação do livro A Promoção do Presidente, um relato sobre as táticas usadas por Richard Nixon, pelo então candidato à Presidência, para seduzir os eleitores americanos e parecer mais competente e adequado ao cargo de líder da nação.

A análise do conflito proposto pela autora, inicia-se logo na primeira página, exatamente no primeiro parágrafo:

"Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre de vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas."

E ela vai além...

"O que dói, o que envenena, e algumas vezes o leva a extremos de desejo de vingança, é o engano de que foi vítima. por parte daquele que é entrevistado."  

Em outras palavras, o entrevistado se sente usado. No caso abordado no livro, muitas vezes o jornalista se mostrou, ao longo de meses a fio, simpático e solidário com seu entrevistado, estabelecendo um vínculo muito próximo da amizade.

Essa é a tese central da narrativa de Malcom que permeia todo o livro. E ela sabe do que está falando. Repórter experiente e uma das mais importantes jornalistas americanas do século XX, com diversos perfis publicados na revista The New Yorker, ela foi processada por má-fé ao relatar a disputa pelo espólio de Freud. 

Outro aspecto bem interessante de O Jornalista e o Assassino, que podemos classificar como uma espécie de ensaio e reportagem, é que a autora foge do dilema ético clássico do jornalismo, sobre os limites da verdade e da isenção no exercício da profissão, para outro igualmente importante: qual é a ética moral em conquistar a confiança do entrevistado para fazê-lo falar e depois ludibriá-lo?

No caso de McGinniss e MacDonalds, Malcom acredita que houve um rompimento de uma fronteira ética que já é tênue. Para a repórter, ficou claro que o jornalista se mostrou não apenas simpático com o médico e sua versão do crime, mas muitas vezes lhe sinalizou acreditar em sua inocência e na avaliação de que MacDonald havia tido um julgamento injusto. O livro publicado sobre o caso, contudo, se provaria quase uma peça formal de acusação do médico, o que o levou a mover um processo contra o jornalista, acusando-o de calúnia.

Malcom foi procurada pelo advogado de McGinniss para expor esse conflito, sob o argumento de que o processo judicial movido por Joffrey MacDonald ameaçava a Primeira Emenda, a liberdade de expressão e de imprensa constitucional nos Estados Unidos, nas ela não se deixa convencer por argumentos tão vagos e parte para uma análise minuciosa dos eventos anteriores a publicação do livro de McGinniss.

Ao longo das páginas, Malcom destrincha a relação mantida pelos dois, assassino e jornalista, por meio de cartas e também de entrevistas. O que mais lhe chama a atenção é a disposição do jornalista de se colocar no lugar de ingênuo entrevistado. Um dos trechos mais marcantes do livro é a análise feita pela autora sobre a ética jornalistica.

"Não acredito na ética situacional e certamente não acredito que jornalistas devam mentir e deturpar para obter a colaboração de ninguém. Acho também que essa duplicidade lança sérias dúvidas sobre o que está escrito. para mim, se a liberdade de imprensa depende do direito a mentir, então é uma liberdade que não deveria ser protegida."

Mas não só de ética jornalistica trata Janet Malcolm. Em outro exemplo, ela se espanta ao conversar com uma senhora chamada Lucille Dillon, uma das juradas no caso analisado. Malcom ouve embasbacada ela contar que era uma adoradora da Constituição Americana, a favor da Primeira Emenda, para logo em seguida emendar que havia casado duas vezes com seu segundo marido por um arranjo financeiro, para que ela pudesse ficar com a aposentadoria dele. Evidencia-se aqui um outro questionamento: Por que pessoas  revelam naturalmente segredos comprometedores a jornalistas?

"Enquanto escutava Lucille Dillon, senti de maneira mais aguda que nunca o surrealismo que há no âmago do jornalismo. As pessoas contam suas histórias aos jornalistas do mesmo modo que as personagens dos sonhos transmitem as suas mensagens elípticas: sem aviso, sem contexto, sem levar em conta o quão estranhas elas vão parecer quando o que sonha acordar e repeti-las."

O Jornalista e o Assassino é um livro venal, não há nada de romantizado ou que se espelhe nas já conhecidas representações do cinema e séries de TV, apenas uma análise nua e crua do papel nada profissional desempenhado por um jornalista A autora demonstra total consciência da  posição de autoridade que assume perante suas fontes. Isso torna cristalina qual deve ser sempre a natureza da relação jornalista/fonte, sempre vislumbrando o fato de que o entrevistado está na posição vulnerável, sem saber de que ângulo será retratado, e ainda assim, muitas vezes está disposto a contar mais do que seria recomendável.. 

"Só um jornalista muito pouco piedoso(ou um muito incompetente) mantém as palavras literais do entrevistado e deixa de fazer aquela espécie de edição e reescritura que, na vida real, os nossos próprios ouvidos fazem automaticamente e instantaneamente."

Ao término do livro, temos a certeza de que O Jornalista e o Assassino é uma reportagem jornalística e um ensaio sobre as condições e a ética do trabalho de jornalista. Uma obra que podemos classificar como sendo um severo golpe contra a autocomplacência no meio jornalístico.

"A ambiguidade moral do jornalismo não está nos seus textos, mas nas relações das quais estes surgem - relações que, de maneira invariável e inevitável, são desiguais." explica Janet Malcolm.


Sobre a Autora


Janet Malcolm é uma das mais importantes jornalistas americanas do século XX. Autora de  oito livros, baseados em labirínticas reportagens publicadas na revista The New Yorker. Seu assuntos variam desde o legado de escritores como Anton Tchekhov, Gertrude Stein e Sylvia Plath, à disputa pelo acesso aos arquivos de Freud ou processos judiciais que causaram comoção nos Estados Unidos, como em O jornalista e o assassino.





* Artigo In memoriam do prof. Dilmo Elias, mestre em Ética Jornalística que se dedicou a  ensinas este aspecto tão importante da nossa profissão.

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