sexta-feira, 5 de julho de 2019

É possível adotar pena de morte para quem pratica crimes contra crianças?

Rhuan Maycon


Rhuan. Este é o nome do menininho brutalmente assassinado por sua mãe e a companheira dela, em maio uma cidade-satélite do Distrito Federal. Esfaqueado, degolado vivo, estripado, queimado… 

É imprescindível abrirmos ao debate sobre punição bem mais rigorosa contra aqueles que praticam crimes hediondos contra crianças. Nada mais justo do que punir com a morte, aqueles que matam inocentes em tão tenra idade. 

Mas como fazer isso se a nossa Constituição Federal não admite a pena de morte? Mudar essa realidade seria possível? 

Fazendo uma análise superficial, a tendência seria responder negativamente. A Constituição, no art. 5º, XLVII, ‘a’, diz que não haverá pena de morte, salvo em casos de guerra declarada. Já no artigo 60, § 4º, inciso IV, há a prescrição de que não será objeto de deliberação proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais, dentre os quais se insere a proibição da pena de morte. Seguindo esse raciocínio, a impossibilidade de adoção da pena de morte, então, faria parte das chamadas ‘cláusulas pétreas’, insuscetíveis de emenda ou reforma pelo poder constituinte derivado. 

Cabe aqui salientarmos que nossa carta magna já possuiu 31 anos de promulgada, um tempo pequeno comparado a outras nações, mas um tempo considerável para que nesse ínterim sejam revistos dispositivos que já não são tão efetivos, uma vez acompanhadas as mudanças da sociedade. 

É justamente esse avanço da sociedade que nos levar a questionar: É correto uma Constituição, por meio das cláusulas pétreas, bloquear a capacidade de autodeterminação jurídica das gerações futuras? 

Vários juristas, especialmente aqueles que se debruçam sobre o estudo da Constituição, já levantam esse mesmo questionamento. Afinal, “congelar” as decisões de futuras gerações sobre determinados temas não seria um autêntico ato de abuso de poder constituinte? 

Ao refletirmos sobre isso, chegamos à lógica conclusão de que as cláusulas pétreas não podem ser instrumento de tirania de uma determinada geração sobre as gerações posteriores. O passado não pode engessar o presente e o futuro. A vontade da maioria, em um dado momento histórico, não pode ter a pretensão de guiar eternamente o agir das gerações seguintes. O mundo evolui a cada segundo. As minorias de ontem podem tornar-se as maiorias do amanhã. Chega a ser insana a ideia de que escolhas passadas devem prevalecer absolutistamente sobre decisões futuras, através da utilização de mecanismos como as cláusulas pétreas. 

Além disso, uma sociedade justa e igualitária é aquela onde a evolução das relações e paradigmas sociais avança de maneira coordenada, planejada e responsável, tendo em vista sempre o bem maior e o respeito às escolhas democráticas. Assim sendo, a preservação a todo custo das cláusulas pétreas é opção antidemocrática, pois impede que o povo diretamente ou por seus representantes, faça periodicamente as correções legislativas tão necessárias para a construção de uma sociedade mais igualitária. 


Não seria “pecado” admitirmos que, nas devidas proporções, as cláusulas pétreas são inúteis e até contraproducentes. A função essencial do poder Legislativo é a defesa dos interesses, direitos e deveres do povo, da sociedade, acompanhando de perto todas as evoluções e avanços ocorridos ao longo do tempo e assim ajustando o necessário para a boa e digna estabilidade social, através da propositura de leis e mecanismos reguladores. Assim sendo, podemos dizer que as cláusulas pétreas fazem desaparecer por completo essa função. Isto porque ao se tornarem incontestes acabam por gerar questionabilidade sob o sistema constitucional. É certo que nossa carta magna foi forjada com arraigadas bases de princípios socialistas. Isso em si, já a torna um instrumento onde existe mais garantia de direitos do que afirmativa de deveres. Talvez seja exatamente isso que nos tenha levado à necessidade de engessarmos a legislação para as gerações futuras. 

Cabe ainda ressaltarmos que devemos levar muito em consideração o que está descrito em nossa Constituição. A Carta Magna em vigor, como se sabe, ampliou em muito o campo coberto pelas cláusulas pétreas. Nossa constituição anterior apenas excluía do alcance do poder constituinte derivado a abolição da Federação e da República. Voltemos então ao art. 60, § 4º da Carta de 1988, que citamos lá no comecinho deste texto. Ao lermos a Constituição encontramos a seguinte redação: 

Art.60. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: 

I. a forma federativa de Estado; 

II. o voto direto, secreto, universal e periódico; 

III. a separação dos Poderes; 

IV. os direitos e garantias individuais. 

Observem bem que o texto proíbe abolir, ou seja, extinguir, eliminar, revogar. Em nenhuma linha ou trecho se fala sobre ser proibido alterar, modificar ou regulamentar. Essa é uma interpretação direta e clara do que está descrito. É justamente isso que nos leva a encararmos como certa a possibilidade de alterarmos dispositivos ligados às cláusulas pétreas. 

No âmbito de alterações sobre a visão a respeito da imutabilidade constitucional temos um exemplo bem prático, o ocorrido em Portugal. A Constituição portuguesa de 1976 sofreu várias revisões, sendo despojada ao longo dos anos de muitos dos seus princípios socialistas, a única exceção foram as obtusas cláusulas pétreas. No entanto, em certo momento da década de 1980, mesmo estas se tornaram incompatíveis com o momento histórico vivido. Algo totalmente compreensível uma vez que, como já mencionamos aqui, a sociedade evolui. 

Jorge Miranda

Para a sorte de Portugal, o engessamento imposto pelas cláusulas pétreas foi derrubado. Jorge Miranda, constitucionalista e professor Catedrático da Universidade de Lisboa, criou a teoria da dupla revisão, uma estratégia engenhosa e eficaz pela qual alterou-se a cláusula que determina quais são as cláusulas pétreas, mas não as cláusulas em si. Dessa forma, primeiro mudou-se a redação das cláusulas que estipulavam as cláusulas pétreas, em uma manobra que podemos chamar de ‘despetrificação’, e numa segunda revisão alterou-se a matéria. Essa foi a solução encontrada pelos portugueses para contornar um ponto ultrapassado e corrigir a injustiça que tirava das futuras gerações o poder que instituir suas próprias e necessárias normatizações e leis. 

Aqui no Brasil esta alternativa já foi comentada até por Ministros no Supremo Tribunal Federal. Em artigo publicado em 1993, a atual Ministra do STF Carmen Lúcia defendeu a ideia de revisão das cláusulas pétreas, desde que submetida à participação popular, através de referendo ou plebiscito. De acordo a ministra, a participação direta do povo, na condição de titular do poder constituinte, outorgaria às reformas a legitimação necessária às mudanças. 

“(…) ao reformador dependerá, necessária e imprescindivelmente, da utilização de instrumentos concretos, sérios e eficazes de aferição da legitimidade da reforma, instrumentos estes de democracia direta, pois já então não se estará a cogitar da reforma regularmente feita segundo parâmetros normativos previamente fixados, mas de modificações de gravidade e consequências imediatas para um povo, que se insurge e decide alterar o que se preestabelecera como, em princípio, imodificável”. - explica a Ministra Carmen Lúcia. 

Outro grande estudioso do Direito Brasileiro, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, também já se pronunciou a respeito da imutabilidade das cláusulas pétreas. Segundo ele, a teoria das cláusulas pétreas é uma construção antidemocrática, não razoável, com uma propensão oportunista e utilitarista que impõe a perpetuação da desigualdade. 

Carmen Lúcia

“O templo da justiça não está numa norma, nem mesmo na norma constitucional, em sua plenitude; repousa no povo, naquilo que ele acredita e quer ver realizado e que se impõe pelo seu poder de ser autor de sua trajetória histórica.” Esta afirmativa, de autoria da Ministra Carmen Lúcia, retrata exatamente a essência da nossa argumentação. 

Há pouco mais que 26 anos, nós brasileiros fomos convocados a ir às urnas em uma ocasião bem específica: Um plebiscito. E sobre o que era exatamente essa consulta? Sobre a forma e o sistema de governo que desejaríamos ter em nosso país. Tivemos que optar entre monarquia ou república, presidencialismo ou parlamentarismo. O sistema de governo presidencialista venceu a consulta popular com 37 milhões de votos. Mas por que relembrarmos esse episódio específico? Se foi possível realizar uma consulta sobre algo de tamanha importância para a nossa nação, por qual outro motivo o povo não poderia ser consultado novamente quando da necessidade de adequação de leis? Cabe aqui mencionarmos que a consulta de 1993 já constava na Constituição de 1988, em suas Disposições Transitórias, o que não foi um impeditivo para que o povo fosse convocado às urnas para decidir sobre outros tópicos de interesse coletivo, como ocorreu em 2005, quando a população foi chamada a opinar sobre o comércio de armas. 63% dos brasileiros votaram a favor da legalização das armas. 

Vale salientarmos que embora as cláusulas pétreas tenham sido concebidas para garantir, de forma eficaz, o ordenamento constitucional e a sua necessária estabilidade, quando essas limitações impedem a Constituição de acompanhar a evolução social, acabam por cumprir exatamente o papel contrário àquele que se prestam. É essa inflexibilidade que torna imprescindível revermos a questão das cláusulas pétreas. Desta forma, pavimentamos o caminho para a adoção da pena de morte para crimes hediondos praticados contra crianças. 

Rhuan, Isabella, João Hélio, Ives, Bernardo... Quantos meninos e meninas são vítimas de crimes todos os dias?

Proteger a criança é o maior ato de defesa do nosso próprio futuro. É por isso que propusemos ao Senado Federal uma ideia legislativa sobre exatamente o que este texto explica: a revisão e alteração das cláusulas pétreas, para posteriormente podermos exigir a implantação da pena de morte para crimes praticados contra crianças. Mas a nossa ideia foi rejeitada, tendo como justificativa a mesma em que todos que fazem interpretações superficiais da Constituição tem: As cláusulas pétreas são imutáveis. 



Mas não desistimos. Encaminharemos uma nova ideia, dentro do que eles podem chamar de “Limites da Lei”. Nesse novo texto proporemos que se torne crime hediondo, todo o qualquer crime praticado contra crianças, desde de pedofilia e abuso sexual, à tortura, agressão e homicídio. Essa mudança na lei, privará os criminosos de alguns benefícios dos quais ainda desfrutam pela legislação atual. O poder de mudarmos nossa nação está em nossas mãos. Precisamos apenas mostrarmos aos nossos governantes o que desejamos para nosso país. 

“Não há verdade constitucional eterna, inquestionável, imutável.” 
Carmen Lúcia 

LINKS

Link para Constituição 

Link para Matéria sobre Caso Rhuan Maycon 

Link para artigo sobre jurista português Jorge Miranda 

Link para Artigo sobre Cláusulas pétreas no Senado 

Link para artigo da Ministra Carmen Lúcia 

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