sexta-feira, 4 de julho de 2025

O perigo da representação estigmatizante dos ciganos na TV brasileira


A nova novela das 18h da Rede Globo, Êta Mundo Melhor, que estreou em 30 de junho como continuação de Êta Mundo Bom!, começou gerando estigmatização e preconceito contra o povo cigano.

No primeiro capítulo da trama de Walcyr Carrasco, a personagem Carmem, uma cigana interpretada pela atriz Cristiane Amorim, convence um casal do interior a entregar a ela o filho desaparecido de Candinho (Sérgio Guizé). Em seguida, ela negocia a criança com a vilã Zulma (Heloísa Périssé), responsável por um orfanato de fachada. Com o dinheiro da transação, Carmem vai embora em busca de seu povo.

A cena, que passou quase despercebida por grande parte da crítica cultural, levanta uma questão urgente: até quando a televisão continuará reforçando estereótipos racistas e estigmatizantes contra o povo cigano?

A ciganofobia — termo que descreve o preconceito, a discriminação e a exclusão histórica vivida pelos povos ciganos — é uma forma de racismo estrutural ainda naturalizada no Brasil. São mais de 800 mil ciganos no país, segundo estimativas do IBGE, que convivem diariamente com a desinformação, a marginalização e a falta de reconhecimento cultural e institucional. Quando a teledramaturgia opta por retratar um personagem cigano de forma criminosa, irresponsável e desumanizada, ela não está apenas “contando uma história ficcional” — está alimentando uma imagem social que reforça o preconceito e contribui para a violência simbólica e real contra comunidades inteiras.

A resposta veio imediatamente por parte de organizações representativas dos povos ciganos, como o Instituto Cigano do Brasil, a Urban Nomads Brasil, o Internacional Romani Union Brasil e a AMSK Brasil. Em nota pública, essas entidades repudiaram a cena da novela e denunciaram a Rede Globo por reforçar estereótipos violentos e propagar desinformação sobre a cultura cigana. 

"Anticiganismo é racismo, e a Globo precisa responder. A novela 'Êta Mundo Melhor' apresentou, logo em seu primeiro capítulo, uma personagem cigana que entrega um bebê a uma golpista exploradora de crianças. Essa representação não é apenas irresponsável, é racista", criticou o texto.

Nas mensagens, as entidades ainda acusaram o canal de propagar estereótipos que já causaram muitos problemas ao povo cigano.

"O que vimos não foi arte, foi reprodução de estereótipos cruéis e coloniais, como o mito da 'cigana que rouba ou vende crianças'. Isso não tem base na realidade, apenas reforça um imaginário que já causou dor, perseguição e exclusão aos povos ciganos ao longo dos séculos. A Rede Globo, como concessão pública, tem responsabilidade sobre o conteúdo que transmite. E o Estado brasileiro tem a obrigação de agir diante da propagação de imagens que marginalizam ainda mais um povo que já luta por reconhecimento, visibilidade e direitos básicos", destacou a carta.

"Nunca roubamos crianças. Somos um povo de cultura, saberes e dignidade. Não queremos ser vilões exóticos de novelas. Queremos respeito", as organizações acrescentaram. 

Elas finalizaram o pronunciamento cobrando uma resposta oficial do Ministério da Igualdade Racial. "Está na hora de dizer: 'Não em nosso nome'. Chega de racismo travestido de ficção. Chega de silêncio institucional. Isso é anticiganismo. Isso é romafobia. E sim, isso é racismo étnico-cultural", concluiu.

O movimento informou ainda que pretende acionar o Ministério Público e órgãos de controle de comunicação social para que a emissora seja responsabilizada pelo conteúdo exibido. As entidades também afirmaram que irão solicitar uma retratação pública da Rede Globo e exigir que haja consultoria cultural para evitar novas representações ofensivas. Para as lideranças ciganas, esse tipo de conteúdo coloca vidas em risco, ao reforçar o estigma que marginaliza crianças e mulheres ciganas nas escolas, nos postos de saúde, nos espaços públicos e até mesmo nas políticas de assistência social.

Em um país onde a palavra "cigano" ainda é associada a charlatanismo, trapaça ou misticismo, a televisão tem um papel central na reeducação simbólica e no combate à discriminação. E justamente por isso, quando um canal com o alcance e a responsabilidade da Rede Globo decide retratar uma personagem cigana como uma criminosa envolvida no tráfico de crianças, o impacto ultrapassa o entretenimento e entra no campo da violação de direitos humanos.

A novela, com forte audiência e poder de formar opinião, deveria exercer papel educativo e inclusivo, e não alimentar imaginários que associam ciganos a práticas ilegais. A escolha de representar uma mulher cigana como alguém que vende uma criança é não apenas ofensiva, mas perigosa. Em um país onde o racismo se manifesta de formas muitas vezes sutis, esse tipo de narrativa dramatizada reforça uma lógica de exclusão que atinge diretamente famílias ciganas que lutam para sobreviver com dignidade e respeito.

É hora de cobrar da mídia responsabilidade social sobre as histórias que escolhe contar — e sobre as consequências que elas geram fora da ficção. A liberdade artística não pode ser justificativa para a perpetuação do preconceito. A televisão, como veículo de massa, precisa escolher se quer ser aliada da diversidade ou cúmplice da ignorância. Afinal, cigano também é povo. Também é Brasil. Também merece respeito.

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