quinta-feira, 2 de maio de 2019

Pesquisadores apontam que estatísticas brasileiras de morte por homofobia são falsas

Em fevereiro acompanhamos o STF - Supremo Tribunal Federal - levar a julgamento a criminalização da homofobia, como crime análogo ao racismo. Tal proposição foi discutida na Ação a Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e no Mandado de Injunção nº 4.733, ações protocoladas pelo PPS e pela Associação Brasileiras de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e das quais são relatores os ministros Celso de Mello e Edson Fachin. Naquela ocasião, após quatro ministros votarem a favor do enquadramento da homofobia como crime, o julgamento foi suspenso por tempo indeterminado. 


Agora, um ponto crucial de embasamento e argumentação da ação que deu origem a esse processo foi colocado em xeque: a veracidade dos dados estatísticos usados por entidades LGBTs para respaldar a proposta de criminalização da homofobia.

A instituição independente Liga Humanista Secular do Brasil, uma associação civil de direito privado, de caráter humanista e sem fins lucrativos, divulgou no dia 01 de maio de 2019, o resultado de uma criteriosa e detalhada pesquisa de apuração dos dados e estatísticas sobre crimes de homofobia publicizados pelo GGB (Grupo Gay da Bahia).

Oficialmente, não há números sobre os mortos por homofobia no Brasil. Há quase quatro décadas, o Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado pelo historiador Luiz Mott em 1980, desenvolve um levantamento de dados independente. São justamente esses dados que tem sido usados como fonte de informação e referência oficial, tanto pela imprensa e órgãos nacionais, quanto por entidades estrangeiras como a Anistia Internacional e a ONU. Vários veículos de informação como O Globo, Estadão, Folha de São Paulo, Gazeta do Povo, Reuters, BBC, NPR, The New York Times já utilizaram a estatística anual de mortes violentas por homofobia do GGB como fonte de dados. Chegando ao ponto de publicações esportivas  alertaram aos atletas LGBT para terem cuidado ao virem ao Brasil para as Olimpíadas, tendo se embasado nas estatísticas do GGB. Além disso, não é segredo algum que inúmeros trabalhos acadêmicos citam em suas referências as estatísticas do GGB, tendo títulos acadêmicos inteiros concluídos com base nelas.


Mas o poder de atingimento dos dados publicizados pelo GGB não para por aí. 
Em pelo menos duas circunstâncias a estatística anual do grupo foi usada durante a última campanha eleitoral à presidência da república, de forma bastante destacada. Em uma dessas ocasiões, a candidata Vera Lúcia (PSTU) mencionou em seu plano de governo registrado que “Este país é também o que mais mata LGBTs no mundo. Uma vítima a cada 19 horas”.  Os dados do GGB também foram utilizados pela a âncora do Jornal Nacional, Renata Vasconcellos, em uma pergunta durante entrevista ao então candidato Jair Bolsonaro.  “A cada 19 horas, um gay, lésbica ou trans é assassinado ou se suicida por causa de homofobia no Brasil”, declarou Renata.


Agora vamos à problemática que envolve as estatísticas do GGB. 
Explicitando melhor: os dados do GGB são, na mais leve das hipóteses, imprecisos. Foi esta a conclusão que chegaram os profissionais envolvidos da verificação realizada pela Liga Humanista Secular do Brasil.  Para descobrir até onde vai a imprecisão, os profissionais da Liga Humanista refizeram todo o trabalho do GGB referente ao ano de 2016, checando todos os dados colhidos pelo Grupo Gay da Bahia. Buscando online pelos nomes das vítimas e locais de falecimento, foram checadas todas as 347 vítimas relatadas e recuperadas as fontes de dados não divulgadas no relatório do GGB. Um trabalho minucioso e demorado, que resultou em uma chocante constatação: Apenas 12% dos casos arrolados pelos dados do GGB são realmente crimes cometidos por motivação homofóbica.



O relatório final da Liga Humanista aponta que o banco de dados de vítimas da homofobia em 2016 no Brasil elaborado pelo GGB sofre de graves problemas de rigor. Apesar do relatório se referir ao Brasil, estão inclusos seis casos de mortes no exterior, como o de Kimberly, transexual morta por um excesso de 94 facadas, em Florença, pelo namorado Mirco Alessi. Além disso, foram encontrados alguns casos duplicados, como o da travesti T. E. Geremias de Moraes, misteriosamente esfaqueada em Valinhos. O relatório também aponta a leitura incompleta dos relatos jornalísticos, quando estes são usados como fonte primárias de dados. Por exemplo, um casal heterossexual supostamente viciado em drogas foi assassinado por um traficante no Ceará. Aparentemente, o caso foi incluído pelo GGB somente porque a manchete omitiu o sexo da mulher, dando a entender erroneamente que poderia ser um casal gay.

Dos 347 casos arrolados pelo relatório do GGB de 2016, 30 foram excluídos da análise por serem mortes no exterior, casos duplicados ou casos em que foi impossível recuperar as fontes. Dos que restaram, 20 casos são suicídios. Não podemos deixar de pontuar que é discutível a decisão de somar suicídios e acidentes a assassinatos. A estatística do GGB consiste em mortes violentas motivadas por homofobia. Obviamente, acidentes não deveriam ser incluídos, pois não existe motivação alguma por trás deles, muito menos a homofóbica. Isso não impediu o GGB de incluir mortes acidentais a seus números. Quanto ao suicídio, é evidente que, nem sempre que um LGBT se mata, é possível afirmar que a causa primária de sua decisão é a homofobia. Suicidas geralmente sofrem de depressão, que é em si a causa imediata de sua morte.

"Um suicida fere a si mesmo, desistindo da própria vida, que lhe pertence. Um homicida fere a outrem, roubando-lhe a vida. Não parece que as duas decisões sejam comparáveis ao ponto de ser justo somá-las num número só." - esclarece um trecho do relatório final da Liga Humanista.

Além dos suicídios, também foram excluídos casos cuja inclusão no estudo original é inexplicável: seis mortes acidentais, o afogamento do diretor de teatro Glauber Teixeira, um caso de agressão em que a vítima sequer morreu, um caso de morto em incêndio sem suspeita de crime, doze mortes suspeitas em que não é possível afirmar que houve crime, uma overdose, entre outros. Isso levou ao resultado final de 258 casos (homicídios dolosos, culposos e latrocínios confirmados). Um número bastante diferente dos 347 originalmente relatados pelo GGB. 

Observe o gráfico a seguir e entendam melhor quantos desses casos realmente foram motivados por homofobia.



A pesquisa feita pela Liga Humanista recuperou os seguintes dados sobre as vítimas: crime ou situação que causou a sua morte, o motivo aparente da morte, os links contendo as notícias-fonte, número de processo judicial onde disponível, e, finalmente, se é possível concluir que a motivação principal ou mais provável da morte foi a homofobia. O resultado desse criterioso levantamento foi a classificação dos casos como “sim”, “não” ou “inconclusivos”.

Alguns casos, diz o estudo, foram mais fáceis de se classificar como motivados por homofobia. É o exemplo do ocorrido com o professor Jair Figueiredo, 38, morto em sua própria casa com 40 facadas, em João Pessoa, após tentar seduzir o assassino, um jovem de 16 anos, que alegou à polícia que a vítima havia pego uma faca após a recusa.

Outros casos incluídos nas estatísticas do GGB são flagrantemente não motivados por homofobia. Fabiana Braz Conceição e Daniella Silva Gomes, que tinham um relacionamento homoafetivo, foram mortas a tiros numa moto porque eram traficantes e disputavam com outros traficantes o controle do tráfico em sua região em Goiânia.


Agora vem o resultado mais bombástico a que chegou a pesquisa da Liga Humanista: Dos casos apresentados pelo GGB, foi possível comprovar que somente 31 foram mortes motivadas pela homofobia no Brasil. Trocando em miúdos: As estatísticas do GGB erraram em 88% dos casos de homicídio. Isso nos leva a chocante comprovação de que apenas 12% dos dados totais para todo o ano de 2016 realmente refletem crimes cuja a motivação foi o ódio, ou seja, homofobia.

O estudo da Liga Humanista levanta um questão bem relevante: "Por que casos como suicídios, acidentes e até um casal de lésbicas traficantes mortas pela concorrência do crime foram inclusos nos dados do GGB?

A resposta para tal questionamento foi identificada pelos pesquisadores na teoria difundida pelo GGB, segundo a qual a homofobia no Brasil seria algo estrutural. Assim sendo, toda e qualquer morte de um LGBT seria motivada pela homofobia. Tal máxima foi encontrada até em um relatório do Ministério dos Direitos Humanos de 2018.  Vale ressaltar que essa metodologia de incluir toda e qualquer morte de LGBT entre vítimas de homofobia apelando circularmente para uma “homofobia estrutural” não é seguida, por exemplo, pelo FBI, que define crime de ódio como “contra uma pessoa ou sua propriedade motivado em todo ou em parte pelos vieses do infrator contra uma raça, religião, deficiência, orientação sexual, etnicidade, gênero ou identidade de gênero”.

Além disso, o GGB utiliza-se do discurso de que o Brasil é o país onde mais se mata LGBT em todo o mundo. Duas agências de checagem jornalística, questionaram a interpretação dos dados do GGB, uma vez que essa afirmação recorrente é incompreensível, pois não apresenta números do exterior para comparação, nem esclarecem como é possível afirmar que o Brasil seria pior que países que punem a homossexualidade com a pena de morte (como países muçulmanos), que evidentemente evitam calcular e divulgar esses números para não chamar a atenção da opinião pública internacional. O Truco, da Agência Pública, classificou essa afirmação como “impossível provar” e a Agência Lupa como “insustentável”.

A revelação das distorções contidas nos dados explicitados pelo GGB gerou descontentamento da comunidade LGBT. Pesquisadores da Liga Humanista relatam que sofreram pressões, humilhações e ameaças. "Ao divulgar versões preliminares desta checagem, nós recebemos ataques virulentos dos participantes do GGB nas redes sociais. Membros da nossa equipe que são LGBT foram classificados como “egodistônicos” e “traidores”. Parece que a acusação de homofobia é o instrumento favorito dos autores dos números inadequados para qualquer crítico de seus métodos. É de se estranhar, pois há acadêmicos envolvidos na coleta e divulgação desses dados, e todo acadêmico deveria achar normal o processo de crítica e revisão por pares."


Não podemos nos furtar à significante realidade de que as estatísticas criminais no Brasil têm muito a melhorar, pois não só não temos uma fonte unificada dos números da violência, como dependemos bastante de levantamentos vindos da área de saúde. A existência de um banco de dados oficial, robusto e verossímil seria preponderante para se combater estudos e pesquisas de resultados duvidosos, como os do GGB. Além disso, antes de cobrar que o Estado preste atenção preferencial a este ou aquele grupo alvo de crimes agravados por motivações torpes como a homofobia ou racismo, parece prioritário cobrar que o Estado cumpra sua função de prevenir e investigar os crimes, bem como punir os infratores com mais eficiência, afinal apenas 8% dos homicídios cometidos no Brasil são esclarecidos.


Parabenizamos a Liga Humanista Secular do Brasil pelo excelente trabalho realizado e fechamos esta matéria com a frase final do relatório da Liga: "A maior aliada da justiça é a verdade. E o maior aliado da verdade é o rigor. Faltam rigor e verdade nos números mais divulgados sobre violência contra LGBT no Brasil."

Links

Link para planilha 2016 do GGB

Link para planilha de verificação de dados  da Liga Humanista

Link para matéria sobre assassinato do professor no Ceará

Link para matéria sobre lésbicas assassinadas por envolvimento com o tráfico de drogas

Link para relatório 2018 do Ministério dos Direitos Humanos que cita os dados do GGB como referência e base de argumentação

Link para definição do FBI sobre crimes de ódio

Link para site da Liga Humanista Secular

Link para matéria sobre julgamento da criminalização da homofobia no STF

Link para matéria da Agência Pública sobre incompletude dos dados sobre assassinatos no Brasil

Link para matéria da Agência Lupa sobre verdades e mentiras na argumentação sobre criminalização da homofobia

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