quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Exposição retrata atrocidades do Holocausto Cigano

Um trem viaja para um céu vermelho, por trilhos com uma suástica gravada. Um olho arregalado espelha uma chaminé ondulante, um crânio e um punhado de pássaros pretos arrastando pedaços de arame farpado.

Ceija Stojka, artista plastica e escritora cigana:
suas obras estarão em exposição em Madri
Essas são pinturas de Ceija Stojkauma cigana austríaca-romena que sobreviveu a Auschwitz, Ravensbrück e Bergen-Belsen para se tornar uma cronista incansável do Porajmos, genocídio nazista contra os ciganos, especialmente Roma e Sinti.

Inspiradas em memórias de décadas, as telas em óleo e acrílico, geralmente não possuem títulos. A verdade é que eles raramente são necessários.

Ceija Stojka morreu em 2013. Seis anos após sua morte, suas pinturas e desenhos são alvo de uma grande exposição no Museu Nacional e Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, Espanha. O nome da mostra não poderia ser mais marcante: "Isso aconteceu".

Stojka, que teve seu primeiro filho aos 15 anos e passou a ganhar a vida como vendedora de tapetes, não teve formação artística, muito pouca instrução intelectual e, durante grande parte de sua vida, nenhum desejo de revisitar as atrocidades de sua infância

Nascida em uma família cigana de comerciantes de cavalos, no estado austríaco da Estíria, em 1933, Ceija Stojka tinha menos de cinco anos quando ocorreu a anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha e as leis raciais nazistas entraram em vigor na terra tomada pelos alemães.

Três anos depois, seu pai, Wackar, foi preso e enviado para Dachau. Ele foi assassinado no centro de eutanásia de Hartheim em 1942. Em 1943, Ceija, sua mãe e seus cinco irmãos foram deportados para Auschwitz. Seu irmão mais novo, Ossi, morreu de tifo no campo, aos sete anos de idade. O resto da família sobreviveu à guerra.

Ceija agarrou-se à vida em Bergen-Belsen comendo plantas e seiva de árvores enquanto esperava, entre os cadáveres, a libertação do campo de concentração.

"Na família, ela quase nunca falava sobre as experiências", diz seu filho, Hojda, que cresceu na Viena ocupada pelos Aliados. Isso porém não impedia que, de vez em quando, a cigana revivesse as dolorosas lembranças do que havia acontecido.

“Lembro-me muito bem, quando eu tinha quatro ou cinco anos. Minha mãe e eu estávamos andando pela rua quando de repente, ela viu dois homens de uniforme: russos. Ela nunca foi realmente rígida comigo, mas naquele momento, ela agarrou minha mão ferozmente e me disse para ficar perto dela. Eu acho que ela entrou em pânico."  relembra Hojda.

Quando chegou aos 50 anos, Ceija sentiu que não podia mais manter o passado à distância. Ela começou a anotar suas memórias e então - inspirada em uma viagem para conhecer a subclasse "intocável" dos Buraku no Japão - começou a pintar.

Entre o final dos anos 80 e sua morte em 2013, ela escreveu três livros, mais de 30 diários e fez mais de 1.000 desenhos e pinturas.

“Minha mãe trabalhou contra o esquecimento”, diz Hojda. E ele continua. “Ela queria que os jovens soubessem o que havia acontecido. Ela queria que alguém lhes dissessem que isso nunca deveria acontecer novamente. Eles tinham que saber de onde vieram”.

Ao escrever, pintar e desenhar, Ceija também conseguiu se adaptar à própria vida. "Ela se libertou contando a história - era como se ela finalmente tivesse poder para se manifestar contra ela." explica Hojda.

A obra escrita de Ceija Stojka tem muitas passagens e frases emocionantes. Mas em um de seus poemas, um verso se destaca pela profundidade de significado e sofrimento: “Auschwitz é meu casaco, Bergen-Belsen meu vestido e Ravensbrück meu colete. do que devo ter medo?

Ao analisar a obra da mãe, Hojda ficou surpreso com o quanto ela se lembrava e como era extraordinário nível de detalhes das telas que registram sua infância e o Porajmos - o Holocausto Cigano. Estima-se que 1 milhão e meio de ciganos, especialmente os Roma e Sinti, foram presos, torturados, usados como cobaias em experiências cientificas e assassinados pelos nazistas e seus colaboradores.

Corpos, alguns nus, outros moribundos e outros em chamas, espalham-se por todo o trabalho de Ceija, cercados, mais frequentemente do que nunca, pelo inevitável arame farpado.

Muitas das pinturas são pessoais. Uma, datada de 1994, mostra um antebraço vermelho com o número Z6399: a tatuagem feita em Ceija pelos nazistas, em Auschwitz, quando a menina tinha apenas nove anos de idade. Outra tela mostra calças de uniforme cinza enfiadas em altas botas pretas - o exato retrato de um nazista feito pelo ponto de vista de uma criança pequena.

Mas há também imagens da primeira infância de Ceija: cavalos, campos de girassóis e caravanas. Um registro dos dias que antecederam a perseguição contra ciganos, um retrato feito antes que seu povo removesse as rodas das carroças e as transformasse em cabanas de madeira.

“A visão de Stojka pode não ser a de um 'profissional' treinado, mas é muito, muito sofisticada”, diz Manuel Borja-Villel, diretor do Museu Nacional Reina Sofia.

“Décadas depois, ela pode pintar suas memórias de infância do ponto de vista de uma criança. Você pode ver isso na perspectiva, como quando ela pinta as botas. É a maneira de uma criança olhar o mundo e isso exige um refinamento visual quando se trata de usar tinta e outros materiais.”  - complementa o diretor do Museu.

Nos próximos quatro meses, o trabalho de uma cigana, que chegou atrasada à pintura e mais tarde ainda ao reconhecimento, compartilhará as paredes de um museu com a pintura anti-guerra mais famosa de todos os tempos: Guernica, o enorme protesto de Picasso contra os  bombardeios da cidade basca, em 1937.

O Fundo Internacional Ceija Stojka , criado no ano passado para ajudar a promover a vida e o trabalho da artista cigana, espera que a exposição ajude a espalhar suas memórias e mensagens.

“O desafio desta exposição é apresentar ao grande público uma artista cigana, talentosa e autodidata”, diz Paula Aisemberg, membro do Fundo Internacional Ceija Stojka e uma das curadoras da exposição.

O mais importante porém é que a exposição trata da necessidade política e histórica de lembrar um genocídio pouco conhecido - o Porajmos, uma tragédia sem precedentes para o povo cigano. O silêncio ensurdecedor sobre o Holocausto Cigano apagou dos livros de história mundial todo o sofrimento vivenciado pelo povo cigano na Segunda Guerra Mundial. Justamente por isso, obras como a Ceija Stojka são tão importantes para o mundo.


O Que foi o Porajmos

Em 15 de setembro de 1935, por ocasião do sétimo congresso anual do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, as chamadas Leis de Nuremberg foram adotadas, em sessão extraordinária, por iniciativa do próprio Hitler. Elas consistiam de três textos, a saber Reichsflaggengesetz, a lei da bandeira do Reich, Reichsbürgergesetz, a lei da cidadania do Reich, e a Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre, lei da proteção do sangue e honra alemães. Especialmente a segunda e a terceira dessas leis foram o que permitiu a disseminação de toda a desastrosa e infame política racial do Terceiro Reich. 

Com base nessas diretrizes, judeus e ciganos foram definidos como “inimigos do Estado” e tratados, ambos, de maneira muito semelhante. Tal semelhança, em perseguições e fugas, acabou resultando numa espécie de aliança entre os dois povos, que, de certa forma, perdura até os dias de hoje. Basta dizer que para a maioria dos ciganos todos os não-ciganos são gadjé (forasteiros), exceto os judeus.

Estima-se que o número de ciganos mortos no Porajmos seja de um milhão e meio, o que representava quase dois terços dos indivíduos que viviam na Europa das décadas de 1930-1940.

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails